Artigos O psicólogo, o vulcão e o amigo de Picasso.

Basiléia – Suiça, 15 de setembro de 2021.
Psicólogo apaixonado pela profissão, atuando no Brasil e Suíça, vivendo sem fronteiras.
Há alguns dias atrás celebrei meu aniversário há poucos metros do topo de um dos vulcões mais ativo do mundo, o Etna (desde abril até agora foram mais de 50 erupções) Há 3 anos havia planejado ir ao cume, mas como existiram alguns riscos devido a intensa atividade, a defesa civil não autorizou ultrapassar os limites – a montanha dá o limite, e só nos resta aceitar. Pude chegar a apenas 2820m de altitude, já que uma semana antes ele havia “trabalhado”; aliás, a cidade de Giarre, onde me hospedei estava coberta de uma camada preta de escória vulcânica. É interessante como os moradores conhecem o vulcão. O tratam como uma entidade viva, uma pessoa da comunidade. O admiram e também se irritam com essas erupções que ora fertilizam a terra, ora sujam e os faz limpar a cidade inteira.
Uma senhora soube que eu havia subido dois dias seguidos até o ponto máximo de “segurança”, embora nunca se esteja seguro em um vulcão que entra em erupção com tanta frequência. Ela me perguntou:
_ E com’è l’Etna? Abbiamo sentito che è cresciuto di qualche metro in più. (E como está o Etna? Soubemos que ele cresceu alguns metros a mais).
Um frentista na cidade exclamou: _Guarda cosa ha fatto questa domenica… ora devo pulire tutto. (Olha o que ele fez nesse domingo… agora preciso limpar tudo).
Já eu, em um primeiro momento ao subir, pensei: _Como é difícil caminhar aqui.
E logo veio outro pensamento ao ver que a trilha desaparecia em meio às cinzas:_ E agora o que eu faço? E se ele resolve ficar “ativo demais”… Eu estava sozinho nesse dia.
No dia seguinte, quando um guia foi solicitado (ninguém sobe ao cume sem um guia) ele disse algo que serve para uma profunda e interessante analogia:
_ O vulcão está sempre mudando, todos os dias ele muda e nós, vulcanólogos, percebemos isso.
Desse momento em diante um pensamento começou a ganhar corpo, sobre as similaridades entre montanhas de lava e nós, humanos; e mais precisamente: sobre a atuação entre o psicólogo e seu cliente (digo “entre”, pois o processo psicoterapêutico é uma via de mão dupla, uma parte do sistema influencia a outra e ambos saem mudados).
Depois dessa jornada, ao anoitecer, esse pensamento foi compartilhado com um artista de quem comprei uma pintura preciosa sobre o vulcão, e que certamente vai ser colocada no consultório que mantenho no Brasil, como lembrete dessa similaridade.
Esse pintor de 89 anos começou a me mostrar suas obras em seu atelier, mas eu estava pouco interessado (e desconfortável quanto aos altos preços). Talvez, para ganhar minha atenção e mostrar sua credibilidade, ele mostrou fotos junto de um dos maiores nomes do mundo da arte, Pablo Picasso. Falou de sua amizade, proximidade de suas famílias e mostrou artigos das vezes que expuseram juntos, inclusive um livro sobre os maiores pintores espanhóis onde ambos estão descritos. Não surtiu muito efeito; Picasso não é meu forte.
A surpresa veio quando ele me mostrou uma obra onde havia retratado o Etna ao entardecer, com cores vibrantes e profundas… E novamente o vulcão e sua analogia surgiram com nitidez. Decidi que iria comprar aquela pintura. O preço teria me feito fugir da galeria, mas vi algo maior, simbólico. Algo a ser transmitido e perpetuado.
_Vou comprar essa obra e colocarei em meu consultório.
Ele e sua família me questionaram do motivo, e então a analogia ganhou vida:
Nesta manhã fui ao Etna, e próximo à cratera central o guia mencionou que o vulcão sempre muda. Me dou conta de que nós, humanos, também sempre mudamos. Às vezes estamos dormentes, e acordamos. Mudamos em meio às sutilezas e aparente calmaria, porém também explodimos com alegria ou fúria… E alteramos tudo ao nosso redor. Seja com muito drama e assombro, ou com a tranquilidade com que, algumas vezes, a lava escorre pela montanha. A montanha de fogo pode assustar e encantar, pode destruir(-se) ou reconstruir(-se). E para ser entendida, ele precisa ser estudada, observada, hipotetizada… e grande parte disso requer o estudo sobre o seu funcionamento interior ou mesmo sobre o seu passado, daquilo que é invisível para nossos olhos, onde nada é exato e a incerteza reina. Assim podemos pensar sobre a sua história e o seu comportamento, e quem sabe até mesmo sobre o que virá pela frente.
Não é assim, também, em nosso trabalho como psicólogos? Andar sobre incertezas mesmo com toda a teoria e técnica que nos é transmitida? Observar e estudar (o invisível), caminhar em trilhas desafiadoras e muitas vezes enegrecidas por cinzas, solicitando a ajuda de um guia para não nos perdermos. Cansar na subida, pensar em desistir, até o ponto em que aprendemos a caminhar passo a passo. E de certo modo, contemplar a beleza dos movimentos de mudança, mesmo quando, às vezes, o outro nos impõe um limite que apenas nos resta respeitar.
Saio desse vulcão e do atelier de Pino la Vardera com uma visão renovada. A pintura é símbolo externo da mudança interna pela qual todos passamos… E o Etna? Bem, ele é o coração da ilha da Sicília e uma montanha de mitos onde os Ciclopes forjam os raios de Zeus. Suas câmaras de magma mantem seu pulsar e seu poder de mudar, destruir e trazer fertilidade, beleza e encantamento aos seus arredores (incrível como os lugares mais verdejantes da ilha são, justamente, nos arredores do vulcão. Longe dele, desértico e inóspito).
O vulcão e o humano são a peça central dessa analogia, retratada em tinta e papel.